Reaproveitamento de tecidos
Atualizado: 6 de fev. de 2021
Autora: Débora Schimidt Nardello (Estilista da marca Lusco Fusco)

“Por mais que tratemos de inovar e agir para melhorar as credenciais de sustentabilidade de uma peça de roupa, os benefícios trazidos por essas mudanças são sempre restringidos pelos sistemas de produção e modelos de negócios que promovem e vendem a peça e pelo comportamento da pessoa que a compra. Produzir roupas com fibras de menor impacto ou com melhores condições de trabalho, embora importante, muda muito pouco o sistema geral, pois essas fibras e peças ‘melhores’ são transformadas nos mesmos tipos de vestuário, vendidas pelos mesmos varejistas e então vestidas e lavadas da mesma forma que antes”. (Livro Moda e Sustentabilidade — Design para Mudança (1)
Para falar em uma indústria da moda envolvida com os conceitos de sustentabilidade devemos começar reconhecendo os muitos desafios que vêm com a tentativa de unir sustentabilidade, indústria da moda e o nosso atual sistema econômico, baseado no crescimento. Para trabalhar com a sustentabilidade na moda precisamos questionar não só como são feitos os produtos, mas também os modelos de negócios existentes e as metas que movem a nossa indústria, senão ficaremos sempre criando ações rasas e limitadas. Muitas das formas de fazer nos principais ciclos de produção da moda nunca são questionadas. É urgente e necessário que analisemos nossas estruturas, nossas práticas de negócios e nossas motivações ou então a busca pela sustentabilidade na moda será sempre superficial.
Em geral, oportunidades de inovação no setor de moda responsável envolvem um trabalho mais lento, complexo e estratégico do que aquele que os designers e empresas estão acostumados. Mas é da participação nesses processos que aprimoramos as práticas atuais e construímos um futuro alternativo.
Retalhos: o retrato do desperdício têxtil no Brasil
O nosso sistema de moda atual transforma recursos naturais em produtos sem pensar muito nas questões ambientais e sociais: o foco é fabricar e comercializar os produtos da forma mais rápida e barata possível. Esse modelo de negócios se sustenta na expansão e no crescimento: aumentar a produtividade, abastecer mais e mais as lojas e incentivar que as pessoas comprem mais para aumentar o fluxo de produção.
No Brasil, a moda é a segunda maior empregadora da indústria de transformação. Em 2016 produziu-se em média 5,4 bilhões de peças. Somos o quinto maior produtor têxtil do mundo e um grande gerador de resíduos têxteis.
O processo de desenvolvimento de produtos de vestuário produz uma grande quantidade de resíduos, resultantes principalmente dos nossos métodos de corte ineficientes. Estima- se que o Brasil produza por ano 170 mil toneladas de retalhos, e 80% desse material é descartado indevidamente em aterros, o que é um grande problema para as empresas, para a sociedade e para o meio ambiente. Na região do Bom Retiro, em São Paulo, onde se encontram 1200 confecções, 12 toneladas de tecidos são descartadas diariamente.
Política Nacional de Resíduos Sólidos
Todo material que sobra de uma produção e que não tem mais utilidade após determinado processo, que geralmente é tratado como indesejável e descartado pelas empresas chama-se resíduo. Segundo a norma brasileira 10.004/2004, sobre a classificação dos resíduos sólidos, eles são resultado de práticas industriais, entre outras, e podem apresentar características diversas como combustibilidade, biodegradabilidade, contaminação, entre outros.
A forma de descarte deve ser pensada visando diminuir os impactos ao meio ambiente, visto que o descarte incorreto pode contaminar cidades, rios, ar (quando o material é queimado). A geração de resíduos é inevitável nas confecções, podendo ser maior ou menor de acordo com o tamanho e posicionamento da empresa.
Pela necessidade de dar um destino adequado aos resíduos das fábricas, foi criada em 2010 a Lei 12.305, na qual as empresas devem dar um destino correto para seus resíduos. No Brasil, a preocupação com o destino dos retalhos ainda é pequena, há poucos processos de reciclagem e reutilização dos resíduos têxteis e a grande maioria acaba em aterros sanitários, lixões ou incinerados.
Porém, pela lei, somente as empresas que possuem acima de 200 litros de lixo diário precisam contratar uma empresa para recolhê-lo. Na moda brasileira, a maioria das confecções é pequena e a praticamente todas descartam seus retalhos nos lixos comuns. Para essas empresas pequenas, os principais obstáculos para adotarem processos de descarte correto são: o processo não é lucrativo (já que é mais barato descartar o tecido), a estrutura empresarial é despreparada e há pouca preocupação com o meio ambiente.
Desperdício mínimo no corte: modelagem zero Waste
Os criadores de moda desenvolvem seus trabalhos de diversas formas: alguns usam técnicas de moulage para dar vida às suas criações, outros usam a modelagem, criando através do papel. Nas grandes empresas, com a busca pela máxima eficiência para conseguir rapidamente o design desejado, os criadores criam através de croquis e modelistas e pilotistas executam o design para ser aprovado. Como nessas grandes empresas há muitas peças para serem feitas a cada coleção, o designer não tem muito tempo para prestar atenção em questões além da estética, como a eficiência no corte dos tecidos — isso fica na responsabilidade da equipe de apoio. Essa equipe muitas vezes tem pouco preparo técnico para encaixar a modelagem ou raramente sugere alterações aos designers na busca por reduzir os resíduos. Na verdade, os tantos retalhos que sobram no corte nos mostram claramente como nossos métodos de corte são ineficientes e a nossa cadeia de produção segmentada.
Muitas vezes o que calcula o jeito mais eficaz de cortar os tecidos é o CAD. Apesar de ser muitas vezes inacessível para pequenas empresas por conta do preço, ele pode ser bastante eficiente. Porém, não podemos nos esquecer que ele é um programa de computador limitado pela lógica do nosso sistema de corte. Ele não pode criar novos conceitos para confeccionar roupas que gerem menos descarte.
Uma técnica bastante inovadora para reduzir o desperdício no corte das empresas é a modelagem Zero Waste. Essa técnica promove a redução no desperdício de matéria-prima pois todas as partes do molde se encaixam como um quebra-cabeça, assim praticamente nenhuma parte do tecido é desperdiçada já que o que sobraria no corte é parte integrante da peça.
Apesar de ser um trabalho complicado e minucioso o Zero Waste permite a criação de novos designs e evita que milhões de toneladas de retalhos sejam descartados já que de 15 a 20% dos tecidos São considerados indesejados e descartados. A ideia aqui não é sacrificar o design da roupa em favor da sustentabilidade, mas buscar harmonia entre eles já que traz muitos benefícios para a natureza e é um diferencial para as empresas.
Além disso, a geração de resíduos representa não somente o desperdício de matéria-prima, mas também de dinheiro, já que aquele tecido teve um custo. No entanto as empresas desconsideram o impacto econômico do desperdício, pois ele é repassado ao consumidor final: usualmente o preço das peças inclui uma parte referente ao que foi jogado no lixo.
Upcycling: novos conceitos na redução de resíduos
Se nossos modelos de negócios e nossos métodos de corte não são pensados para diminuir o desperdício ou buscar um destino correto para os resíduos têxteis, nos últimos anos vêm surgindo muitas iniciativas que trabalham com foco em criar a partir das sobras nas confecções, tanto os retalhos resultantes do corte, quanto os finais de rolos de tecidos que não serão mais usados. Essas iniciativas vão desde artesanato, confeccionar roupas com esses retalhos até reciclar essas sobras para transformá-las em novos fios e tecidos. Essas ideias têm ajudado a diminuir os resíduos enviados para lixo e desenvolvido novos negócios e formas de fazer roupas.
Apesar dos designers que trabalham com esses materiais ainda serem poucos, essas iniciativas vêm ganhando força e se espalhando pelo mundo e também pelo Brasil.
Para desenhar roupas feitas com retalhos é importante pensar numa série de questões: o design precisa ser pensado para o tipo e tamanho da matéria-prima, ou seja, a criação só é possível quando o designer sabe quais são os retalhos disponíveis, o que difere muito do método de criação mais popular, onde primeiro cria-se a coleção para depois encontrar os tecidos necessários para tornar aquele desenho realidade — há, então, inversão no processo criativo.
Outro ponto importante é o cuidado ao misturar tipos de retalhos diferentes (ex. poliéster e viscose, seda e tricot) pois os tecidos possuem características diferentes que influenciam caimento, lavagem e uso.
Também é imprescindível conhecer a procedência dos resíduos têxteis que serão usados nas criações, sejam eles doados ou vendidos — infelizmente muitas empresas misturam os retalhos com outros tipos de materiais, o que em alguns casos pode contaminar um lote inteiro de retalhos que poderiam ser usados. É necessário que o criador e a empresa cedente dos tecidos estejam conectados e alinhados em relação à como o material deve ser separado e armazenado.
O custo dessas peças de reuso é, em geral, mais elevado, apesar de muitas vezes a matéria-prima ter sido doada; isso porque a construção da peça é muito mais minuciosa e trabalhosa, com um design diferenciado. Enquanto em uma fábrica comum podemos empilhar os tecidos e cortar várias peças ao mesmo tempo, no trabalho com retalhos as peças são cortadas individualmente, uma a uma. Ainda na etapa do corte há um cuidado ao misturar cores, tecidos e estampas, o que utiliza mais tempo que nas confecções tradicionais onde tudo isso já está pré-estabelecido muito tempo antes. Além disso, a parte da costura deve ser feita com muita atenção e cuidado já que muitas vezes essas peças têm muitos recortes que podem ser de cores/estampas diferentes para cada tamanho. E, claro, são peças em sua maioria limitadas ou únicas — uma vez que aquele retalho de tecido acaba a peça não será repetida novamente.
Além da Lusco Fusco, marca desenvolvida por mim que trabalha com esse conceito, existem outras marcas com propósitos similares fazendo trabalhos fantásticos, como a Re-Roupa, From Somewhere, Reet Aus e a Zero Waste Daniel.
Reaproveitamento acessível: Banco de Vestuário e Banco de Tecido
Antes de morar no Rio de Janeiro, morava em uma cidade no interior do Rio Grande do Sul, chamada Caxias do Sul; foi lá onde começou a minha história com moda e sustentabilidade quanto tive a oportunidade de trabalhar em um lugar chamado Banco de Vestuário, uma instituição que identifica, recolhe e separa os resíduos têxteis de empresas da região e direciona-os para a comunidade, principalmente Clubes de Mães, grupos de Terceira Idade, igrejas, associações de bairros, ONGs e centros comunitários, para que as sobras das fábricas possam beneficiar a comunidade. O Banco de Vestuário foi um projeto pioneiro muito importante, pois nasceu quando pouco se falava em descarte têxtil. Além desse trabalho de direcionar os resíduos têxteis, o Banco de Vestuário também oferece diversos cursos de costura e artesanato.
Outra iniciativa fantástica para tornar os retalhos mais acessíveis para a comunidade é o Banco de Tecido, criado pela cenógrafa e figurinista Lu Bueno, com sedes em São Paulo, Curitiba e Florianópolis. No Banco de Tecido as pessoas podem depositar seus tecidos que estão esquecidos e receber créditos por quilo depositado para “sacar” outros tecidos que estão no Banco. Também é possível comprar tecidos por quilo, caso você não tenha tecidos para trocar, todos por um valor fixo. O Banco de Tecido é uma forma de colocar na roda tecidos sem uso para dar vida nova a eles e aumentar a vida útil do material. É perfeito para pequenos negócios que gostariam de trabalhar com tecidos de reuso, pessoas que querem fazer pequenos projetos e para as marcas que tiveram sobras de coleções.
Aviamentos: descarte que merece a nossa atenção
Não só os tecidos são descartados indevidamente, mas também os aviamentos. A diferença entre eles é que o descarte dos tecidos é bastante visível pela quantidade, enquanto os aviamentos geralmente ficam esquecidos em estoques, enferrujando e estragando. Zíperes, botões, fivelas, rebites, entre outros podem gerar um impacto ambiental bastante significativo, principalmente porque a sua produção envolve mineração e petróleo. Freqüentemente os aviamentos são negligenciados quando o assunto é sustentabilidade na moda.
Em geral os aviamentos são descartados (ou guardados eternamente em estoques) pelas confecções pela falta de planejamento das empresas e pouca flexibilidade dos fornecedores, que só vendem quantidade mínima, muitas vezes maior do que as confecções realmente necessitam. Assim sendo, muitas marcas compram mais aviamentos do que de fato precisam e essa matéria-prima acaba no lixo. Além disso, as fábricas têm falhas de planejamento de coleção, pela nossa cadeia produtiva muito segmentada, e falta conexão entre os diversos setores que envolvem a produção da roupa.
Outra questão é que os designers em geral negligenciam a questão dos aviamentos, focando muito na parte estética e pouco na ambiental: é muito raro um designer pensar em diminuir ou substituir os aviamentos pensando na natureza e no ciclo de vida do produto.
A questão dos aviamentos é um problema que poderia ser minguado com criação mais minuciosa, melhor planejamento nas empresas e flexibilidade de fornecedores.
Reciclagem industrial: como transformar resíduos em novos tecidos
Reciclagem e upcycling são termos diferentes, apesar de muitas vezes as pessoas confundirem os dois por ambos trabalharem com o que seria descartado. O Upcycling é dar vida nova e aumentar o valor de materiais que iriam para o lixo mantendo a sua forma original, enquanto a reciclagem envolve processos químicos ou mecânicos que desmanchem o produto para transformá-lo em algo novo.
A reciclagem têxtil ainda é incipiente e muito carente de pesquisas e desenvolvimentos, por isso é feita somente com alguns tipos de tecidos e por seus processos ainda serem complicados e pouco acessíveis, o produto final mais torna-se mais caro, o que pode desestimular o uso por parte das empresas. A maior parcela dos tecidos reciclados torna-se matéria-prima não para a moda, mas para a confecção de barbantes, estopas, usado no setor mobiliário, automobilístico e de decoração.
Em geral a reciclagem de tecidos é feita com retalhos pré-consumo, ou seja, os retalhos que sobram do corte das confecções. Também pode ser feita com retalhos pós-consumo, que são as roupas já usadas, mas os retalhos pós-consumo são pouquíssimo utilizados, pois as roupas já usadas são descartadas em geral sem etiquetas de composição, com muitos aviamentos, sujas ou parcialmente degradadas. E apesar do Brasil produzir 170 mil toneladas de retalhos por ano,o Brasil importa 13 mil toneladas de retalhos de outros países, principalmente Honduras e Turquia — isso acontece pela nossa falta de organização, cultura de jogar fora e coleta e separação ineficiente desses materiais.
Esse tipo de reciclagem é feita com retalhos da mesma composição, por exemplo, 100% algodão, 100% poliéster, 100% lã. Isso acontece porque as fibras possuem características diferentes de resistência, tingimento e beneficiamento, o que influencia no processo produtivo e uso. Devemos ter claro que ainda não é possível misturar todos os tipos de tecidos no mesmo caldeirão da reciclagem. Também é importante saber que nem todos os tecidos podem ser reciclados: tecidos com tratamentos anti-chamas e tecidos hospitalares não podem ir para o processo de reciclagem industrial.
Para a reciclagem têxtil usam-se métodos mecânicos ou químicos. No método mecânico os retalhos de tecidos são separados por cor e composição, triturados para virarem fibras novamente, refiados e então tecidos. O problema desse método é que acontece a quebra das fibras, tornando-as mais curtas. Os fios gerados desse processo têm um tendência a serem de qualidade inferior, por isso são misturados a fibras virgens para que o fio torne-se resistente ao processo produtivo e o tecido tenha qualidade. A reciclagem mecânica usa menos energia e como os resíduos são separados por cor e processados em lotes específicos, elimina-se a necessidade de tingimento, reduzindo também os impactos hídricos.
A reciclagem industrial de tecidos é muito importante, pois muitas sobras do corte são difíceis de serem utilizadas em técnicas de upcycling e o artesanato infelizmente não dá conta de todo material que pode ir para o lixo, então a reciclagem vem para solucionar principalmente o problema dos retalhos muito pequenos, inclusive as próprias sobras das marcas que trabalham com upcycling, porque mesmo nas marcas que reaproveitam tecidos há sobras (muito menores que nas grandes empresas, claro).
Mudando o jeito de pensar e de agir
Para que possamos inovar e resolver os muitos problemas na moda, primeiro precisamos mudar a nossa forma de pensar, questionando como são construídos nossos negócios, os novos papéis do design, quais novos produtos podem ser criados não só por estética, mas que também resolvam questões socioambientais, construir uma indústria baseada em novos valores e entender que é possível construir produtos e negócios de sucesso unindo sustentabilidade e estética. Trabalhar somente dentro dos moldes atuais de negócios faz com que a moda responsável seja superficial.
Muitas coisas vêm mudando de um tempo para cá. Se antes as empresas descartavam seus retalhos de qualquer jeito, hoje em dia já existe a Política Nacional dos Resíduos Sólidos e empresas trabalhando com a reciclagem desse material que iria para o lixo. Uma nova geração de designers vem surgindo encarando novas formas de criar, seja com materiais de reuso ou criando para gerar menos desperdício, novos negócios como o Banco de Tecido estão nascendo para deixar o upcycling ainda mais acessível, estamos nos questionando mais e mais a cada dia, quebrando paradigmas e entendendo a importância da moda não só como beleza e proteção mas também como instrumento de transformação. Ainda há muitos desafios a serem enfrentados, mas cada vez mais as pessoas estão conscientes e criando uma nova moda, melhorando as nossas soluções existentes e inventando novas, para que continuemos a existir e produzir.
..
(1) FLETCHER, Kate; GROSE, Lynda; tradução Janaína Marcoantonio. Moda e Sustentabilidade, Design para mudança. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2011.
(2) CARVALHAL, André. Moda com Propósito, Manifesto pela Grande Virada. São Paulo, Editora Paralela, 2016