Algodão e suas questões
Atualizado: 6 de fev. de 2021
Autora: Débora Schimidt Nardello (Estilista da marca Lusco Fusco)

A pele é o maior órgão do corpo humano, mas quantas vezes você parou para pensar o que está em contato com ela diariamente? Maquiagens, cosméticos, roupas, toalhas, lençóis…. Aquela que nos protege também precisa de cuidados e questionar e entender o que vestimos também é um caminho para uma vida mais saudável.
Na Índia, o algodão já era produzido, fiado e tecido há 3 mil anos antes de Cristo. Ainda que hoje em dia seja muito misturado com outras fibras sintéticas, como o poliéster, é preferido por suas propriedades como conforto, maciez, durabilidade, resistência e facilidade de lavar. Por ser uma fibra muito versátil pode ser misturada com outras, tanto naturais quanto sintéticas, por isso encontramos com facilidade tecidos misturados — poliéster com algodão, lã com algodão, viscose com algodão, em porcentagens diversas.
A História rápida do algodão
O algodão era usado há 3 mil anos antes de Cristo, mas foram os indianos que colocaram o algodão no comércio entre os povos. Em 2600 a.C. a Índia já comercializava tecidos de algodão, lápis-lazúli e marfim, que eram trocados por lãs da Mesopotâmia. Foi por intermédio dos mercadores indianos que o algodão chegou ao Egito e se espalhou para o leste do Mediterrâneo. Da Índia foi comercializado também para o Oriente Médio, África, Macedônia, Grécia, Roma e Sul da Europa. Antes da chegada do algodão na Europa, a fibra mais utilizada por lá era a lã.
Os primeiros tecidos de algodão surgiram na Índia e chamavam atenção por suas cores maravilhosas. A tecelagem era uma ocupação doméstica tão comum por lá que chegou a ocupar metade da sua população. Foi só em 1854 que foi aberta a primeira fiação mecanizada na Índia.
Em 1498, com a chegada de Vasco da Gama à Índia, novos horizontes foram abertos para o comércio de algodão. Logo vieram holandeses e ingleses e houve muito desenvolvimento das exportações dos tecidos de algodão para a Europa,o que favoreceu o enriquecimento das cidades indianas.
A partir do século XVIII o algodão passou a ser levado em estado bruto para a Inglaterra, e não mais em tecidos prontos, para ser trabalhado por lá e vendido entre os países.
No Brasil, os navegadores portugueses encontraram o algodão selvagem, que já era cultivado, fiado e tecido. Os índios os utilizavam para fabricar redes, algumas peças que vestiam e para elaborar tochas. Com o passar do tempo a produção de algodão foi ampliada e melhorada pois os colonizadores portugueses traziam novas variedades. No século XVIII a cultura algodoeira ganhou impulso e nessa época a chita, nosso tecido mais brasileiro, vestia escravos, operários e colonos, principalmente por seu preço acessível e por ser adequado ao nosso clima. A abertura do portos, decretada por dom João VI, em 1808, facilitou a expansão comercial brasileira e hoje, tantos anos depois, somos o 5º maior produtor de algodão do mundo.
Como funciona a produção do algodão?
O algodão é produzido pelo algodoeiro, planta da família das malváceas. Suas fibras crescem aderidas às sementes dentro de uma cápsula, ou capulho, que se abre quando maduro. As flores do algodão tem a vida curtíssima — cerca de 12 horas apenas. Os elementos que as compõe, celulose, água e gordura são o que vão constituir as fibras de algodão. Do ovário da flor surge um fruto em formato de cápsula. Muita gente pensa que algodão é flor, mas na verdade o algodão é o fruto. Quando a cápsula atinge a maturidade, cerca de 48 dias após o surgimento, ela se abre mostrando os flocos de algodão que envolvem a semente. A colheita deve ser imediata.
Antigamente a colheita era feita manualmente, a mecanização deu-se a partir do século XIX. Ela não é tão perfeita quanto a manual, mas agilizou o processo e barateou o produto final, fazendo com que ele se popularizasse.
Depois da colheita vem o processo que chamamos de descaroçamento, que é a separação do algodão puro da semente que está no interior da fibra. A máquina que faz esse processo foi inventada pelo americano Eli Whitney, em 1794 e se chama descaroçadeira. Do caroço retirado é extraído óleo comestível e a moagem dos resíduos vira farelo usado na alimentação de gado e como fertilizante.
Depois de limpo o algodão será fiado para então ser transformado em tecido. Grandes máquinas fazem o trabalho de fiar o algodão, torcendo e puxando as fibras até que elas tenham a espessura adequada.
Após fiado, os fios de algodão serão entrelaçados para virarem o tecido nós usamos.
Algodão x pesticidas, água, trabalho escravo e outras questões
Quando se trata da produção de algodão convencional, temos uma série de questões a pensar: o algodão movimenta no mundo, por ano, cerca de 12 bilhões de dólares e envolve mais de 350 milhões de pessoas, desde as fazendas até seu processamento e embalagem.
Mas a verdade é que apesar de ser um grande gerador de empregos, o cultivo tradicional do algodão tem algumas questões bem complicadas relacionadas à saúde dos agricultores pela utilização excessiva de agroquímicos, uso intenso de água, degradação da terra, contaminação dos aquíferos, danos à biodiversidade e trabalho escravo e infantil.
Os trabalhadores dos algodoais têm problemas de saúde frequentes depois de expostos a pesticidas com alto grau de toxicidade (como defeitos congênitos, cancerês, doenças mentais e até suicídio). A Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que há cerca de 3 milhões de envenenamentos por pesticidas a cada ano, resultando em 20 mil mortes anuais (é praticamente 1 morte a cada 30 minutos), na maioria entre as zonas rurais de países em desenvolvimento. O algodão é responsável por 24% do uso de inseticidas no mundo (dos quais metade é tóxica e classificada como de alto risco pela OMS) — isso é mais do que qualquer outro cultivo, apesar de ocupar 2,4% da área cultivável do planeta.
O uso excessivo de agrotóxicos não só é perigoso para a saúde dos trabalhadores, mas também para toda comunidade ao redor, pois contamina água e solo, destrói a biodiversidade local, espalha doenças…
O algodão é cultivado em mais de 100 países, cada um com suas próprias condições biológicas e desafios. Nem todos os desafios são associados somente ao uso de substâncias químicas. Os recursos hídricos são de extrema importância: para se produzir uma camiseta de algodão são necessário 2700 litros de água (essa é a quantidade que nós costumamos beber em 3 anos!). Na Ásia central, por exemplo, o mar Aral foi reduzido a uma fração do que era pois a água dos rios que nele desaguavam foi desviada para irrigar os algodoais próximos dali.
Além do quantidade excessiva de químicos nas plantações de algodão e do uso excessivo de água utilizada na sua produção, há grandes problemas de exploração de mão-de-obra e trabalho infantil nas fazendas. Em países com o Uzbequistão, por exemplo, o governo rotineiramente mobiliza crianças para garantir que as cotas estatais de algodão sejam alcançadas. Os trabalhadores rurais recebem baixos salários e há oscilação nos preços das matérias-primas, o que resulta em ganhos reduzidos e na dificuldade em permanecer na terra, gerando desigualdade e pobreza.
Algodão geneticamente modificado
Com a proposta de diminuir o uso de pesticidas nas fazendas veio então o algodão geneticamente modificado, adotado pela primeira vez em 1996 e que hoje representa 50% de todo algodão convencional produzido no mundo.
Ele é um algodão projetado de modo que o código genético da planta inclui uma toxina bacteriana venenosa para as pragas. Isso significa que o cultivo seria atacado com menos frequência e, portanto, requer menos aplicações de pesticidas. A indústria bioquímica afirma que isso gera economia ao agricultor e mantém o nível de produção e qualidade das fibras.
Muito se discute sobre o algodão geneticamente modificado e sobre o monopólio das sementes — a Monsanto, após patentear plantas geneticamente modificadas, tornou-se a maior corporação de sementes e químicos da história.
A ativista ambiental Vandana Shiva, no filme True Cost conta melhor sobre o assunto:
“ O algodão Bt é um algodão no qual foi adicionado o gene de uma bactéria, para produzir uma toxina. Mas o algodão Bt, que deve controlar uma peste foi oferecido porque é uma forma das empresas possuírem a semente. Então o fazendeiros se endividam quando compram as sementes, por causa do alto custo, 17 mil por cento a mais. Eles adquirem também altas dívidas porque a promessa de controle das pestes não é cumprida e eles têm que comprar mais pesticidas. (…) Para eles (as empresas) é ganhar ganhar ganhar ganhar. Já para a natureza e as pessoas é perder perder perder perder. E chega o momento que os agentes dessas empresas chegam para o fazendeiro e dizem ‘Você me deve isso. Você não me pagou. Agora a sua terra é minha.’ Neste dia, o fazendeiro vai até a sua plantação, toma uma garrafa de pesticidas e morre.”
Algodão Orgânico
Se o algodão convencional e o geneticamente modificado envolvem tantas questões perigosas, uma boa alternativa é o algodão orgânico, apesar dele representar menos de 1% da produção mundial da fibra.
O algodão orgânico recebe uma certificação, como a dos alimentos orgânicos, que garante que aquelas fibras são produzidas em harmonia com a natureza, sem a utilização de agroquímicos perigosos, contribuindo para a preservação ambiental e desenvolvimento da comunidade.
As vantagens do algodão orgânico são muitas:
- a fertilidade e a biodiversidade do solo são conservados e, inclusive, melhorados;
- há redução da necessidade de água;
- evita a contaminação da água e da cadeia alimentar;
- menor emissão de gases efeito estufa, porque se utiliza menos fertilizantes minerais;
- minimizam-se os riscos para a saúde dos agricultores e suas famílias;
- comunidade rurais tornam-se mais saudáveis.
A produtora de algodão orgânico Larhea Pepper, que tem sua fazenda nos Estados Unidos fala bastante sobre o cultivo de algodão orgânico no filme True Cost. Ela começou a trabalhar com esse cultivo depois que seu marido faleceu na produção de algodão convencional, aos 50 anos, de câncer causado pelo uso de químicos na plantação. Ela fala:
“Muitas vezes os consumidores se conscientizam sobre leite orgânico, por exemplo, ou notam que eles têm alguma alergia, e o interessante é que o algodão que eles colocam no corpo, apesar da pele ser o maior órgão do nosso corpo, não tem muita importância porque eles não vêem a conexão: ‘oh, eu como essa maçã orgânica, então não estou diretamente ingerindo pesticidas e produtos químicos, ou o que seja’. Mas eles não fazem essa conexão direta com as roupas. Então temos que começar a olhar no âmbito comunitário mais amplo. Que isto é sobre nosso ar, é sobre nosso mundo. É sobre nosso planeta, é sobre nossa gente. E é a consciência de que, talvez você não sinta que está tendo impacto direto ao comprar uma camisa orgânica, mas o impacto que você causa é num panorama mais amplo no mundo como um todo e especialmente na comunidade onde o algodão é cultivado”
Algodão Reciclado
Uma outra opção à produção convencional de algodão é o algodão reciclado. Oficialmente, o algodão reciclado é aquele fabricado a partir dos resíduos de algodão pré ou pós consumo. No pré consumo é a reciclagem de restos de fios e tecidos das confecções; no pós consumo é a reciclagem de roupas usadas e descartadas. Na prática, os resíduos pré-consumo são a base principal do algodão reciclado , já que muitas vezes é complicado reciclar uma roupa já usada, pela diversidade de materiais presentes nelas, como botões, zíperes, etiquetas, que são difíceis de separar antes do processo de reciclagem, ou mesmo a mistura com outras fibras, como poliéster, viscose, lã, etc. e a falta de etiquetas de composição em roupas já usadas.
O processo de produção do algodão reciclado começa com a separação dos resíduos de algodão das confecção que são classificados por cor e por tipo, e então triturados juntos, mecanicamente e sem o uso de água, corantes ou produtos químicos, para dar origem à fibras de algodão simples.
Após, as fibras são refiadas, passando por processos de cardagem e aparelhamento, para atingirem a espessura desejada e depois serem fiadas novamente. Esse fio, para se tornar similar ao do algodão tradicional passa por um processo de estreitamento, na mesma máquina de algodão convencional. Vale lembrar que as fibras resultantes desse processo de reciclagem são fibras curtas difíceis de serem fiadas, por isso muitas vezes esse algodão é misturado com fibras virgens para que o fio se torne resistente ao processo produtivo.
A reciclagem do algodão é muito importante, pois toneladas de resíduos têxteis são descartados todos os dias, e a maior parte desse material poderia entrar no ciclo de reciclagem e virar tecido novamente, diminuindo a necessidade de extração de matéria-prima virgem, diminuindo a quantidade de lixo que vai parar em aterros e lixões e reduzindo gastos com energia e a necessidade de novo tingimento.
Algodão e a gente ❤
Gostaria muito de ressaltar a importância de entender e conhecer como são feitos nossos tecidos. Seres humanos e tecidos são inseparáveis há milênios — nascemos e morremos envoltos neles, dormimos enrolados neles, vestimos nossos bebês, abraçamos nossos travesseiros, enfeitamos nossos presentes, escolhemos os mais bonitos para ocasiões importantes. Apesar de muita gente subestimar o poder das roupas, entender como elas são feitas, saber que o algodão veio da terra e foi cultivado por pessoas como nós pode criar um novo capítulo na nossa história, trazendo uma mudança significativa para nossas vidas e nossa sociedade.
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(1)FLETCHER, Kate, GROSE, Lynda. Moda e Sustentabilidade, Design para Mudança. São Paulo, editora Senac São Paulo, 2011. (2) SALCEDO, Elena. Moda ética para um futuro sustentável. São Paulo, editora G. Gili, 2014. (3) PEZZOLO, Dinah Bueno. Tecidos, História, tramas, tipos e usos. São Paulo, editora Senac São Paulo, 2007.